O Estado de Coisas Inconstitucional e sua Aplicabilidade no Contexto Jurídico Brasileiro
O Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) é um conceito jurídico que tem ganhado relevância no debate sobre a efetivação dos direitos fundamentais em diversos sistemas jurídicos, inclusive no Brasil. Originado na jurisprudência da Corte Constitucional Colombiana, o ECI surgiu como uma resposta a situações de violações sistêmicas e estruturais de direitos fundamentais, que não poderiam ser sanadas por medidas judiciais convencionais.
O termo "Estado de Coisas Inconstitucional" foi mencionado pela primeira vez em uma decisão da Corte Constitucional Colombiana, em um caso que tratava das condições de crianças deslocadas internamente no país. A partir desse momento, o conceito passou a ser debatido e adotado por diversos sistemas jurídicos ao redor do mundo, visando a superação de crises institucionais que impedem o pleno gozo dos direitos previstos nas constituições.
No contexto brasileiro, o debate sobre a aplicabilidade do Estado de Coisas Inconstitucional ganhou destaque a partir do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da existência de um ECI no sistema prisional brasileiro, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Neste caso, a Suprema Corte reconheceu que as condições precárias e desumanas das unidades prisionais configuravam um quadro de violação estrutural de direitos fundamentais.
A ADPF 347, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), foi um marco na aplicação do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) no Brasil. Neste caso, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental foi proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com o objetivo de debater a crise do sistema penitenciário nacional e buscar soluções para as condições desumanas e degradantes em que se encontravam os detentos.
O pedido da OAB na ADPF 347 consistia na declaração do ECI no sistema carcerário brasileiro, visando evidenciar a violação sistemática e estrutural de direitos fundamentais dos presos, em especial o direito à dignidade, à saúde e à integridade física. A OAB argumentava que o Estado não cumpria com sua obrigação constitucional de garantir condições mínimas de existência aos detentos, submetendo-os a um ambiente insalubre e incompatível com a dignidade humana.
O STF, ao analisar a ADPF 347, reconheceu a existência do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional brasileiro. A Corte considerou que as condições caóticas das prisões, tais como superlotação, falta de infraestrutura básica, violência e ausência de políticas de ressocialização, configuravam uma situação de violação estrutural de direitos fundamentais que não poderia ser resolvida por medidas judiciais pontuais.
Com isso, o Supremo determinou a adoção de diversas medidas para enfrentar o problema, como a elaboração e implementação de planos de curto, médio e longo prazo para a melhoria das condições carcerárias, a realização de mutirões carcerários para revisão de processos e a destinação de recursos específicos para a construção de novas unidades prisionais e a implementação de políticas de ressocialização.
A decisão na ADPF 347 representou um marco na atuação do Poder Judiciário brasileiro na defesa dos direitos fundamentais dos detentos e na busca por uma efetivação mais justa e humanitária do sistema prisional. A aplicação do Estado de Coisas Inconstitucional nesse caso evidenciou a capacidade do STF de enfrentar situações de crise institucional e de exigir mudanças estruturais por parte do Estado para garantir o respeito aos direitos fundamentais de todos os cidadãos.
Dessa forma, a ADPF 347 se tornou um exemplo de como o ECI pode ser aplicado de maneira eficaz no contexto brasileiro, demonstrando a relevância desse instrumento jurídico na promoção da justiça social e na proteção dos direitos humanos em situações de grave violação sistêmica de direitos fundamentais.
Também podemos verificar que o Estado de Coisas Inconstitucionais é um conceito que se refere a situações em que a inefetividade na garantia de direitos fundamentais é estrutural, sistemática e generalizada, ultrapassando a esfera de atuação do Poder Público e demandando uma atuação mais abrangente para a sua solução.
Basta verificar o caso desenhado na ADPF 976, onde com a situação dos moradores de rua, o Estado de Coisas Inconstitucionais pode ser uma abordagem pertinente para analisar e enfrentar os problemas enfrentados por esse grupo social vulnerável destacando os pontos abaixo:
1. *Inefetividade na garantia de direitos fundamentais:*
- O estado de abandono e desamparo em que se encontram muitos moradores de rua evidencia a ineficácia das políticas públicas existentes em garantir o direito à moradia, à saúde, à assistência social e à dignidade humana para esse grupo.
2. *Ações estruturais e abrangentes:*
- A aplicação do conceito de Estado de Coisas Inconstitucionais na situação dos moradores de rua pode demandar a implementação de medidas estruturais e abrangentes, que vão além de soluções pontuais e emergenciais, visando a promoção de políticas públicas efetivas e duradouras.
3. *Intervenção do Poder Judiciário e do Poder Executivo:*
- Diante de um estado de coisas inconstitucional, cabe ao Poder Judiciário e ao Poder Executivo atuarem de forma coordenada e efetiva na implementação de medidas que possam reverter esse quadro, assegurando a proteção dos direitos fundamentais dos moradores de rua.
4. *Enfrentamento da vulnerabilidade social:*
- A análise sob a ótica do Estado de Coisas Inconstitucionais na situação dos moradores de rua implica em reconhecer a necessidade de políticas públicas integradas, que atuem na raiz dos problemas que levam à situação de vulnerabilidade social, visando a sua superação de forma efetiva e sustentável.
Portanto, a aplicação do conceito de Estado de Coisas Inconstitucionais na situação dos moradores de rua permite visualizar a complexidade e gravidade dos problemas enfrentados por esse grupo e reforça a urgência de uma atuação conjunta e coordenada do Estado para garantir a efetivação dos direitos fundamentais dessas pessoas em situação de vulnerabilidade.
Diversos doutrinadores contribuem para o debate sobre o ECI no Brasil, cada um com suas perspectivas e argumentos. Destacam-se, por exemplo, Daniel Sarmento, Ingo Wolfgang Sarlet e Clèmerson Merlin Clève. Sarmento (2016) ressalta a importância do ECI como mecanismo de superação de problemas sistêmicos na efetivação dos direitos fundamentais, enquanto Sarlet (2012) pondera sobre os limites da atuação judicial nesse contexto, visando preservar a harmonia entre os poderes. Clève (2019), por sua vez, destaca a necessidade de critérios claros para a configuração de um ECI, a fim de evitar decisões judiciais excessivamente invasivas.
Em relação à viabilidade da aplicação do Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, a jurisprudência do STF tem demonstrado uma abertura para a utilização desse conceito em situações de violações estruturais de direitos fundamentais. Além do caso do sistema prisional, outras questões como a demora excessiva na prestação jurisdicional e a ausência de políticas públicas eficazes poderiam ser objeto de declaração de um ECI.
O professor e jurista Daniel Sarmento tem sido um dos principais defensores da aplicação do Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, argumentando que essa doutrina constitucional pode ser uma ferramenta poderosa para a efetivação dos direitos fundamentais em situações de gravidade extrema, nas quais as soluções tradicionais se mostram insuficientes.
Em suma, o Estado de Coisas Inconstitucional representa uma evolução no campo do Direito Constitucional, permitindo que o Poder Judiciário atue de forma mais efetiva na proteção dos direitos fundamentais em situações de crise institucional. A discussão sobre a sua aplicação no Brasil ainda está em curso, mas a jurisprudência do STF tem sinalizado a sua abertura para a utilização desse conceito em casos excepcionais e de extrema gravidade.
*Bibliografia Sugerida:*
- SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
- SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
- CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização das Omissões Estatais pelo Supremo Tribunal Federal. Revista dos Tribunais, 2019.
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